O funil de folding: A paisagem de energia ideal

Paisagem de energia de uma proteína real

As proteínas reais não "vivem" em redes bidimensionais, nem mesmo em redes cúbicas. Vivem como nós - aliás dentro de nós - num espaço contínuo tridimensional. De que maneira é que isto se repercute na paisagem de energia?

Os graus de liberdade necessários para descrever uma conformação, que neste caso passam a ser os comprimentos e os ângulos de ligação, deixam de tomar apenas valores discretos, como acontece na rede quadrada, em que cada vector ri apenas pode tomar três orientações diferentes, para variar de forma contínua. Carregue aqui para ver um vídeo ilustrativo dos graus de liberdade de uma proteína real.

Animação do folding de uma proteína.

Daqui resulta que, mesmo para proteínas pequenas, o número de conformações é à priori infinito. A função E(Г) toma valores num espaço cuja dimensão é ainda da ordem do número de aminoácidos da proteína, mas todos os pontos desse espaço, em vez de apenas um número grande mas finito, correspondem a conformações possíveis em princípio.

No entanto, apesar desta diferença, também neste caso temos degenerescência e frustração, e os mecanismos que as explicam são os mesmos que os que analisámos no caso do modelo discreto.

Deste conjunto de ingredientes resulta que a energia das proteínas reais, como função do arranjo geométrico dos aminoácidos, deixa de ser um conjunto de pontos, e passa a ser uma hipersuperfície num espaço de algumas centenas ou milhares de graus de liberdade, em que zonas de baixa energia, ou vales, se encontram separadas umas das outras por barreiras de energia, as montanhas e cumes.


O funil de folding

Um jogador de golfe que coloque uma venda nos olhos e tente jogar dessa forma, só por um mero acaso conseguirá acertar com a bola num certo buraco. Da mesma forma, só com muita sorte é que um alpinista conseguirá chegar ao cume de uma montanha sem utilizar uma bússola. Nestas condições exóticas e apesar da topografia das duas paisagens ser tão diferente, elas são de alguma forma equivalentes. Ou seja, sem a orientação adequada o resultado de jogar golfe ou de fazer trekking é exactamente o mesmo: Um passeio aleatório, ou pelo green, ou pela montanha.

Se a paisagem de energia for muito acidentada, como a da figura abaixo, a proteína vai encontrar muitas barreiras de energia difíceis de transpor, que são o equivalente das muitas montanhas e cumes da figura. Por outro lado, se for demasiado plana como o campo de golfe , a proteína corre o risco de ter que deambular eternamente até conseguir encontrar o seu estado nativo (o buraco certo!). Ou seja, tal como o alpinista e o jogador de golfe, também uma proteína precisa de orientação para explorar a sua paisagem de energia e encontrar o estado nativo num intervalo de tempo relativamente curto.

Os cenários de uma montanha e de um campo de golf podem ser equivalentes quando os exploramos sem a orientação adequada.
Os cenários de uma montanha e de um campo de golfe podem ser equivalentes quando os exploramos sem a orientação adequada.

Resultados de estudos analíticos e de simulações computacionais com modelos de rede mostraram que o declive da paisagem de energia deve ser tal que permita que a proteína seja "empurrada" e "deslize" de uma forma mais ou menos fácil até ao estado nativo. Mais precisamente, a topografia global da paisagem de energia é em forma de funil como se mostra na figura seguinte.

Funil de folding determinado via simulação computacional e paisagem de energia de uma proteína real evidenciando três caminhos de folding alternativos.
Funil de folding determinado via simulação computacional e paisagem de energia de uma proteína real evidenciando três caminhos de folding alternativos.

A largura do topo do funil reflecte o conjunto de todas as conformações desnaturadas acessíveis a uma proteína no início do folding. Estas são as conformações menos estáveis - de maior energia. É possível atingir o estado nativo partindo de qualquer uma dessas conformações iniciais e percorrendo um dos muitos caminhos de folding alternativos. Cada um desses caminhos corresponde a um conjunto de conformações diferentes pelas quais a proteína passa até chegar à conformação nativa. À medida que o folding progride, não só a energia das conformações vai diminuindo até atingir o mínimo global na conformação nativa, como também, o próprio número de conformações acessíveis vai diminuindo até ser apenas um. Na realidade, a partir de certa altura todas as trajectórias coalescem num caminho de folding único, no final do qual se encontra o estado nativo.


Folding de proteínas: a perspectiva moderna

Os conceitos de paisagem de energia e de funil de folding conduziram aquilo a que se costuma chamar a "nova perspectiva do folding de proteínas", em oposição à perspectiva clássica que, como vimos, opunha Anfinsen (e a Termodinâmica) a Levinthal (e a Cinética). Na realidade esta nova perspectiva (re)concilia os pontos de vista daqueles dois cientistas. O estado nativo pode ser o estado termodinâmico mais estável - o mínimo global da paisagem de energia -, e a procura desse estado não é aleatória embora não exista apenas um único caminho, como propôs Levinthal, mas existam, isso sim, vários, muitos caminhos de folding possíveis.

Para terminar resta dizer que a utilização de modelos simples como os modelos de rede e esta "nova perspectiva" do folding de proteínas, que resultou largamente da aplicação deste modelos, foram sem dúvida os factores mais importantes que revolucionaram a nossa maneira de pensar no mecanismo do folding. Esta nova perspectiva permitiu não só interpretar resultados experimentais antigos de uma forma alternativa, mas, também, o que é talvez mais importante, estimulou o desenho de novas estratégias experimentais que têm permitido, a pouco e pouco, desvendar os detalhes destes complexos processos biológicos. Na realidade, hoje em dia, já sabemos muita coisa, os mais optimistas diriam até que se calhar já sabemos quase tudo sobre o mecanismo do folding de proteínas pequenas. O mecanismo do folding de proteínas grandes, esse ainda permanece um grande mistério...