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Entrevista com Pierre-Gilles de Gennes

Entrevista de Pedro Patrício e Patrícia Faísca

Por ocasião de uma visita recente a Lisboa, no dia 18 de Junho de 2004, a convite do Centro de Física Teórica e Computacional da Universidade de Lisboa, tivemos oportunidade de o entre­vistar, já ao fim do dia. Antes, tinha apresentado duas palestras de âmbitos muito diferentes, intituladas "The hard life of inventors", e "How living cells find their prey: chemotactism".

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Pierre-Gilles de Gennes

Pierre-Gilles de Gennes nasceu em Paris. Estudou física na École Normale de Paris e doutorou-se em 1957; trabalhou no Comissariat à l'Energie Atomique (CEA) em Saclay, com A. Abragam e J. Friedel e na Universi­dade da California, Berkeley, com C. Kittel. A sua investigação neste período incidiu sobre a dispersão de neutrões e magnetismo.

Depois do serviço militar na Marinha Francesa, vol­tou a fazer in­vestigação em física no CNRS, em Orsay, onde formou um gru­po de supercondutores; em 1971 tornou-se Professor no Col­lège de France. A partir de 1968, a sua investigação centrou-se na matéria mole, altura em que começou a estudar cristais líquidos.

Trabalhou em problemas de física de polímeros, dinâmica de molhagem e física-química da adesão. Entre os prémios que recebeu contam-se o Nobel da física, o prémio Wolf (Israel) e os prémios Holoweck (Sociedades Inglesa e Francesa de Física) e Ampère.

Depois de receber o Nobel em 1991, alunos, escolas e clubes de ciência em todo o mundo convidaram-no para falar sobre o seu trabalho de investigação, a vida dos cientistas e o papel da ciência no mundo.

I. Percurso pessoal

P. — Vamos começar esta entrevista por aspectos do seu percurso pessoal: Porque é que escolheu física?

R. — Para já tinha um problema de escolha entre ciências e letras. Eu gostava muito das duas. Mas tinha a im­pressão que nas letras, um pouco como nas artes, na altura em que eu tive que escolher – depois da guerra – havia um laxismo um pouco estranho. Tal como nas artes havia quem atirasse um balde de tinta à parede e dissesse: "eu fiz uma obra de arte", na literatura passava-se algo semelhante. Em ciências tinha a impressão que, mesmo que alguém tivesse ideias delirantes – como "atirar um balde de tinta" –, dois ou três anos mais tarde saberíamos se tinha sido uma boa ou má ideia. Estamos num terreno onde existem certezas mais fortes e onde se vê melhor aquilo que nós próprios fazemos. Eu penso que, de alguma maneira, isso dá-nos uma maior segurança. Tenho uma filha, por exemplo, que é escultora, e vejo que ela fica muito ansiosa porque mesmo quando tem sucesso, ela não sabe se esse sucesso corresponde a uma moda ou se foi porque fez algo de verdadeiramente importante, que permanecerá. Nós em geral não fazemos coisas extraordinariamente importantes, mas ao menos sabemos muito bem em que medida essas coisas são úteis. Creio que foi isso que me empurrou para as ciências.

P. — Agora, uma questão um pouco mais específica: porquê a física em vez de outra ciência?

R. — Na altura eu aprendia biologia, química, física... eu penso que – estamos a falar dos anos cinquenta – era um período em que a física era uma explosão extraordinária. A física quântica começava a estar bem compreendida, a física do estado sólido desenvolvia-se bem, a óptica estava muito refinada / sofisticada. Havia uma grande quantidade de coisas a aparecer na física. Portanto, muito naturalmente, era a via a seguir nesse momento. Agora provavelmente teria sido diferente. Tenho ainda um filho de 26 anos que estuda física, por isso a opção ainda se põe, mas tenho uma filha de 27 que estuda biologia. A escolha é menos evidente.

P. — Então o sentido da utilidade na ciência interessa-lhe – isso leva-nos à próxima questão. Na Universidade aprendemos aplicações formidáveis da ciência, a beleza dos conceitos (o poeta Álvaro de Campos dizia que "o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo" ), mas o processo de aprendizagem parece ser ligeiramente diferente do da investigação. Um filósofo dizia que "antes da descoberta das coisas, existe a revelação da própria questão"...

R. — Isso é provavelmente verdade. Muito frequentemente, quando trabalhamos, não colocamos a boa questão e só depois de termos lutado com o problema durante algum tempo é que nos apercebemos que em vez dessa questão, deveríamos ter colocado uma questão mais simples, e depois uma questão ainda mais simples e finalmente chegamos à boa questão. A ideia que a investigação é a boa pergunta é importante. Este é o meu ponto de vista pessoal, mas há ainda uma observação: a de que vemos à nossa volta pessoas muito capazes, que se debruçam sobre problemas banais. E que algumas vezes desperdiçam as suas vidas com um problema sem interesse. A questão de decidir se uma pergunta é verdadeiramente boa passa também por saber se o assunto está amadurecido, se temos possibilidades de chegar a bom termo uma vez que 10 anos antes isso teria sido impossível e 10 anos depois o problema já se terá tornado trivial. É como observar um fruto e ver se ele está maduro. A escolha do problema contém numa certa medida a noção da qualidade do fruto. Vi amigos meus passar anos, fracções importantes das suas vidas a tentar encontrar as soluções exactas do modelo de Ising a três dimensões, ou o modelo completo da turbulência, coisas deste tipo, e esses problemas não estavam amadurecidos. São exemplos de problemas que não foram muito bem escolhidos.

P. — Citando Einstein, "classical thermodynamics made a deep impression upon me. It is the only physical theory of universal content concerning which I am convinced that, within the framework of the applicability of its basic concepts, it will never be overthrown". Quais são as teorias científicas do passado que mais o marcaram? Pode dar alguns exemplos?

R. — Eu diria que talvez o que mais me impressionou no quadro da termodinâmica foi as pessoas terem conseguido desenvolver a teoria, ainda que com uma visão muito imperfeita daquilo que discutiam. Carnot, por exemplo, tinha uma visão muito imperfeita do que era o calor. Agora, para responder à vossa questão... Sim, eu penso que cada geração constrói edifícios teóricos que permanecerão soberbos. Por exemplo, todos os edifícios teóricos ligados à propagação. No início, as ondas elásticas, depois Maxwell, e depois, por exemplo, a mecânica quântica, mais sob o ponto de vista de Schrödinger, etc...Todas essas teorias ficarão, e mesmo se um dia forem descobertas mecânicas mais sofisticadas, elas vão manter a sua validade no contexto de um domínio restrito. Talvez se formos para ordens de grandeza comparáveis ao comprimento de Planck elas deixem de ter sentido, mas mantêm um domínio inviolável de validade. Um domínio inviolável, embora finito.

P. — Ao longo da sua carreira tem feito contribuições significativas em muitos domínios diferentes (magnetismo, supercondutividade, polímeros, cristais líquidos, etc...). Qual tem sido a motivação que o leva a explorar tantos problemas diferentes?

R. — Gosto desta pergunta. Penso que a resposta tem dois aspectos. O primeiro, é de alguma forma técnico, relaciona-se com o facto de eu gostar muito de fazer experiências e teorias simples. Quando se está no começo de algo, isso é possível. Depois disso, refinam-se detalhes e torna-se necessário uma bagagem teórica muito maior. O mesmo se passa com as experiências. Por exemplo, quando eu deixei a supercondutividade, tínhamos compreendido muitas coisas sobre ligas simples. Estas ligas são muito fáceis de fazer e têm propriedades muito interessantes – os chamados ‘supercondutores sujos'. Se quiséssemos ir mais longe, numa segunda etapa, teríamos que utilizar uma metalurgia muito mais sofisticada. O que significaria construir um laboratório metalúrgico na sua totalidade. Eu sempre quis permanecer a um nível simples. E, passado algum tempo, não podemos permanecer num nível simples. O outro aspecto da resposta tem que ver com os colaboradores.

Quando voltei do serviço militar, como professor assistente em Orsay, veio ter comigo um dos meus companheiros da Marinha que me disse que gostaria de fazer um doutoramento em supercondutividade e que tinha financiamento de uma empresa. Era um experimentalista. Disse-lhe: "está bem, vamos tentar, vamos construir uma equipa experimental". Consegui a ajuda de alguns colegas experimentalistas de Orsay para montar uma instalação de hélio. Lutei para conseguir o espaço e por fim construímos uma instalação provisória, sem autorização. Depois, durante cerca de um ano, nenhuma experiência funcionou. Eu estava muito preocupado e não dormia à noite porque tinha quatro jovens comigo e queria que eles fizessem o doutoramento. Acabámos por ser salvos, mas essa é uma outra história... Passados três anos eles tinham encontrado assuntos muito razoáveis e conseguido produzir. Nesse momento apercebi-me que neste tópico particular estes jovens respondiam mais eficazmente do que eu. Então porque ficar? É bastante claro que nestas condições a melhor coisa a fazer é sair discretamente e deixá-los tomar as responsabilidades. Fiquei muito contente por ter feito isso. Por vezes aconteceu-me os colaboradores seguirem-me. Por exemplo, quando passei dos supercondutores para os cristais líquidos, um dos meus primeiros alunos na equipa da supercondutividade, Etienne Guyon, mudou-se também para os cristais líquidos e descobriu alguns truques muito inteligentes que lhe permitiram usar o seu conhecimento sobre a evaporação de metais no vácuo nesta outra área. Em todo o caso, acho que é muito importante a ideia de que quando a nossa equipa inicial se torna madura, apenas nos resta sair. O mesmo se passa com as crianças: nós educamo-las e num dado momento apercebemo-nos que têm autonomia suficiente. Mal nos damos conta disto convém deixá-los seguir o seu caminho. Depois existe um último aspecto, que é a curiosidade. De repente, por causa do doutoramento da minha filha, fiquei consciente de todas as questões em neurociências e disse: "não posso morrer sem ter percebido alguma coisa sobre este assunto", um pouco como um alpinista que vê uma grande montanha e diz: "tenho que subir ao topo desta montanha". Mas existe uma diferença: quando há muitas montanhas que se podem escalar, deve-se escolher aquela em relação à qual se espera ter algum retorno útil mais tarde. Não é apenas pelo prazer pessoal de um pequeno grupo que se deve optar por fazer uma determinada coisa. Também se deve procurar ter algum retorno útil. Por exemplo, podemos encontrar teóricos que desenvolvem teorias abstractas para resolver algum problema estatístico bonito, que é muito difícil e muito elegante, mas ninguém quer saber nada disso excepto eles próprios, e isto..., OK, eu posso aceitar que o façamos, mas não ficaria feliz se o fizesse porque sinto que envolver estudantes num assunto destes é embaraçoso.

P. — No seguimento desta questão gostaríamos de lhe perguntar quais são os seus actuais interesses de investigação?

R. — Penso que a neurociência é o que me mantém mais ocupado de momento porque o campo é vasto e temos que aprender muito e ler uma grande quantidade de livros, desde a psicologia à psiquiatria, e até à descrição de alguns testes experimentais sobre seres humanos, macacos ou ratos. É um campo que envolve ainda alguma modelização teórica e até, em certas alturas, temos que fazer filosofia. Não sou um grande filósofo, mas OK. Isto é uma coisa em grande! Algumas pessoas que trabalham neste campo são verdadeiramente inteligentes, vêem-se experiências que são de uma preciosidade e de uma beleza tais que isto me mantém muito ocupado. Por outro lado, eu tenho também algum interesse no movimento e agregação celular. Por último mantenho ainda, por diversão, interesse em problemas que estudei no passado. Às vezes falamos com alguém que nos leva de volta a um interesse do passado e não conseguimos resistir a fazer mais alguma coisa. Fizemos por exemplo este ano um artigo sobre um problema divertido em cristais líquidos...

II. Ciência e interdisciplinaridade

P. — À medida que a ciência se torna cada vez mais especializada fala-se muito de – mas aparentemente pratica-se pouco – trabalho interdisciplinar. Sabemos que é um forte defensor da investigação interdisciplinar. Importa-se de comentar porque é que pensa que isso é tão importante em geral? E como pode ser conseguido?

R. — Mencionei nas palestras de hoje alguns exemplos em que a interdisciplinaridade é importante. A noção de que hoje em dia um engenheiro químico deve saber um pouco de biologia, porque a certa altura o seu trabalho vai depender de conhecimentos específicos neste domínio e ele não poderá evoluir sem isso, parece-me óbvia. Agora, as dificuldades são muito claras. Se tivermos a tentação de ter uma espécie de educação global, que cobre tudo, então acabaremos por não saber nada bem e isso é muito perigoso. Por exemplo, eu diria que em tempos passados uma grande parte da química-física era feita assim – por químicos que não eram suficientemente bons para fazer química, acabando por se mudar para a química-física, ou por físicos que não sendo suficientemente bons para fazer física, se mudaram para a fronteira. Este tipo de perigos existe e para os evitar tem que se ser muito inflexível. Por exemplo, quando eu estava na Escola Superior de Física e Química Industrial (ESPCI), em Paris, éramos muito inflexíveis em relação ao facto dos químicos saberem o suficiente de física e os físicos o suficiente de química. Tem que se ser muito exigente para evitar que tudo se transforme num folclore. Não quero dizer nomes, mas penso no caso particular de alguém em economia, que veio da física estatística, e que escreveu recentemente um livro sobre as crises dos mercados financeiros que é apenas bla, bla, bla... Ele menciona coisas que conhece das transições de fase e diz que essas coisas se transpõem para a economia, mas não o justifica com argumentos rigorosos. Então existe um perigo. Eu diria: interdisciplinaridade? Sim, precisamos dela claramente mas temos que ter muito cuidado para não nos envolvermos com as pessoas erradas.

P. — Mas tem alguma ideia em concreto sobre como poderemos conseguir a interdisciplinaridade? Teremos que treinar as pessoas ao nível das licenciaturas, de modo a serem investigadores interdisciplinares, ou teremos que ser cuidadosos apenas ao nível da formação dos grupos de investigação?

R. — Em França nós temos ambas as atitudes. Penso que o sistema dos grupos é um sistema muito bom porque ajuda realmente a cobrir as falhas. Vejo muitos casos. Por exemplo, no Instituto Curie alguém interessado na síntese da actina e na mecânica dos movimentos resultantes pode colaborar com um bom enzimologista que é capaz de reproduzir um pouco da maquinaria muito complicada que polimeriza a actina. Este é um bom exemplo onde, ao nível do grupo, se podem fazer coisas que nunca se poderiam fazer se estivéssemos sozinhos. Mas também é importante termos a capacidade de pensar em termos muito gerais, porque dependemos de pessoas que lidam com linguagens e contextos completamente diferentes.

Eu gosto realmente desta noção de misturar coisas, mas mais uma vez, isso implica muito trabalho e não se consegue rapidamente. De alguma maneira isto é uma sensação reconfortante para as pessoas mais velhas. Por exemplo, Nevill Mott, em Inglaterra, tinha uma experiência enorme em estado sólido e dessa experiência ele retirava não só conhecimento dos fenómenos, mas também muita intuição. Ele sabia, ele tinha uma espécie de sentimento interior sobre o funcionamento das coisas. Tenho uma grande admiração por Mott por causa disso. Ele manteve a sua produção científica até uma idade bastante avançada.

P. — Organizou na ESPCI (onde foi Director) cursos de pós-graduação em química e biologia?

R. — O sistema francês é um sistema onde, depois de terminarmos a escola secundária, passamos dois anos num sistema preparatório muito exigente, e só depois disso, somos seleccionados para entrar, por exemplo, na ESPCI. E uma vez lá, durante quatro anos, as manhãs são usadas para as aulas teóricas e as tardes são passadas no laboratório, o que significa uma preparação laboratorial particularmente forte e uma educação universitária com algumas características tradicionais que são boas. Era este o estado das coisas quando fui para a ESPCI. Nessa altura tentei duas coisas. Em primeiro lugar, implementar o sistema de tutoria britânico na escola, o que demorou bastante tempo. No primeiro ano fez-se pesquisa em Inglaterra, em lugares como Cambridge, Oxford e também no Imperial e em Bristol. Depois, o segundo ano foi passado a discutir com o corpo docente. No terceiro ano finalmente começámos. No início foi delicioso, porque a biblioteca passou a estar cheia de estudantes à procura de referências para poderem responder às questões dos tutores. Passados algum anos, este sistema, de alguma forma, decaiu. No início, o sistema também funcionou muito bem porque tínhamos muitos investigadores jovens de fora da escola, que faziam de instrutores e tutores, e que traziam muito sangue novo. Mas, passado algum tempo, a escola reagiu da maneira esperada e passou a usar os seus próprios estudantes como tutores, as coisas voltaram a ser mais tradicionais e os assuntos mais ou menos os mesmos de um ano para o outro. Com fotocopiadoras disponíveis, os novos alunos passaram a ter acesso às respostas dos alunos dos anos anteriores. Por isso, este sistema não teve um final feliz. Havia também um problema de dinheiro. Era possível pagar um sistema onde um tutor, tinha não um, mas quatro alunos. Nestes casos, tipicamente, um dos alunos está genuinamente interessado em seguir a orientação do tutor, um ou dois alunos podem até ter um interesse razoável, e os restantes não têm interesse nenhum. Se eu tivesse tido dinheiro suficiente para que o sistema funcionasse de um para um, penso que o desafio teria sido muito maior, o estudante ficaria muito mais embaraçado quando não conseguisse produzir uma resposta, etc. Teria sido melhor. Para além da tutoria, realizei lutas eternas para conseguir reduzir as matérias que são ensinadas. No tempo da tutoria consegui uma redução de 30%. Depois lutei para introduzir a biologia, o que me levou mais doze anos. Depois disso, reduzi o ensino em cerca de 20%: quando introduzi a biologia tive que arranjar espaço para essa disciplina. E quando saí, tinha já preparado a minha terceira onda de redução de forma a que o meu sucessor não tivesse que o fazer. Para um jovem sucessor é sempre embaraçoso começar a lutar com os professores logo de início. Por isso preferi que eles lutassem antes comigo porque eu não me importava. Assim, deixei o meu sucessor com um espaço relativamente livre. Resumindo, digamos que os meus feitos foram o sistema de tutoria, a biologia após 12 anos de luta e a redução dos cursos. Penso que estas foram as coisas mais importantes.

P. — O que pensa do papel da simulação computacional na física?

R. — Ah! sim, já me perguntaram isto algumas vezes. Lembro-me de uma vez em que um vendedor de uma grande empresa de computadores me pediu para dar uma pequena palestra por ocasião do anúncio de um grande progresso tecnológico. Pensei um pouco – eu não tenho computador, não sou um entusiasta dos computadores –, mas disse-lhe que sim. A minha conclusão, grosso modo, foi a seguinte: à medida que a tecnologia se torna cada vez mais poderosa e, num sentido ingénuo, cada vez mais inteligente – e isto é num sentido muito ingénuo – a dificuldade consiste em conseguir fazer corresponder a inteligência do utilizador à inteligência da máquina. Claro, o que eu tenho presenciado é que existem muitos casos em que as pessoas fazem cálculos enormes, com uma grande (e pretensa) precisão, mas com dados muito incertos, e disso eu não gosto. Por outro lado, existem alguns casos de pessoas com talento, que fazem realmente coisas importantes e que não poderiam ser feitas de outro modo. Não me lembro facilmente de nomes, mas existe um investigador que simulou um problema de adesão de metais. Olha-se para a forma como os metais se separam e isso é algo que não se pode prever, penso eu, de uma forma razoável, fazendo contas à mão. Aí os computadores tornam-se necessários. Um outro exemplo é Gary Grest nos polímeros. Gary Grest fez realmente coisas muito importantes em reptação, onde não existia outra maneira de o fazer. Mas foi preciso muito engenho para o conseguir. Ah! Lembrei-me do nome do primeiro: Mark Robbins de Baltimore. Resumindo, existem umas quantas pessoas que eu admiro e que merecem todo o meu respeito, mas existe muita produção que não é de todo interessante.

P. — Nos últimos anos temos visto muitos físicos a fazer trabalho fora das áreas tradicionais da física e a contribuir para outras disciplinas, desde a biologia às ciências sociais. Como interpreta este interesse? Poderá ser um sintoma de uma crise na física? Ou antes o nascimento de uma nova ciência sem fronteiras internas?

R. — Sim, sim. Eu penso que existe uma certa crise na física mas não penso que isso seja um problema de maior. Vou-lhe contar um caso típico, aquando da descoberta dos supercondutores a alta temperatura. Em poucos meses, não sei exactamente quantos, tínhamos da ordem de 5.000 pessoas em todo o mundo a trabalhar em supercondutores a alta temperatura. Isto significou, por um lado, que estes supercondutores levantaram questões muito interessantes – ainda levantam, ainda não os compreendemos totalmente –, mas ao mesmo tempo significou que estas 5.000 pessoas não estavam a fazer nada de relevante, e que por isso mesmo puderam mudar muito rapidamente de área. Penso que isto é uma indicação de que existem áreas – como por exemplo a física do estado sólido – que se estão a tornar muito tradicionais. É por isso que tenho alguma relutância em financiar a física do estado sólido. Agora, existe outro aspecto, que é um aspecto positivo: alguns destes campos eram completamente desconhecidos. A biofísica, num certo sentido, é antiga. Um dos primeiros casos foi o de Delbruck. Delbruck era um físico de partículas – podemos chamar-lhe assim –, nos primórdios da física de partículas, foi ele o primeiro a calcular a dispersão da luz pela luz. Mais tarde, passou a participar significativamente na biologia molecular e foi um dos inventores das técnicas de leitura do DNA. Por isso a biofísica, num certo sentido, existe já há muito tempo. Não se deu uma grande revolução na biofísica, mas deu-se, isso sim, um aumento de interesse. Esse aumento não corresponde, no entanto, à nucleação repentina de algo. No caso da economia, as coisas são um bocadinho diferentes mas não estou certo dos motivos. Houve uma altura – esta pode ser uma parte da resposta –, durante a qual a nossa comunidade passou a compreender as transições de fase profundamente. Digamos que, com Kadanoff e outros como ele. Uma vez isto compreendido existiu uma tentação natural de aplicar estas ideias onde fosse possível. Esta é uma das características mais fracas dos físicos, dos físicos teóricos: uma vez encontrada uma coisa que funciona bem para um certo propósito, eles têm tendência, quando confrontados com um novo problema, de achar que os seus resultados também se aplicam, igualmente bem neste novo caso... E aí existem, muitos, muitos erros cometidos pelos físicos. Um, que é claro para mim, é o caso de Prigogine. Prigogine criou uma grande agitação em torno do facto de a vida estar relacionada com processos irreversíveis. É óbvio que estes processos não existiriam sem terem alguma irreversibilidade, mas esta ideia não nos leva muito longe, e especulou-se demasiado. Um outro exemplo diz respeito a uma observação sobre os glóbulos vermelhos: estas células vibram quando as vemos ao microscópio e para alguns biólogos isto era a manifestação de algo dentro do "espírito" de Prigogine, de instabilidades químicas no interior destes pobres glóbulos. Mas o que a minha colaboradora e amiga Françoise mostrou foi que esta vibração era simplesmente a manifestação da existência de flutuações térmicas na membrana destas células, extremamente flexíveis e sem tensão superficial, apenas com energia de curvatura. Quando se tem apenas energia de curvatura as amplitudes das flutuações são enormes. Podia-se mostrar que o fenómeno observado experimentalmente correspondia à dinâmica duma membrana flexível num meio viscoso. Um fenómeno simples foi completamente obscurecido por causa das ideias de Prigogine, etc. E existem muitos casos como este. Por isso eu penso que devemos ser muito cuidadosos e não tentar impor aquilo que julgamos saber.

P. — Vamos voltar atrás, aos assuntos relacionados com biofísica. Houve muito trabalho nesta área. Para além disso, no último concurso europeu Marie Curie RTN (Research Training Network) o financiamento foi quase exclusivamente concedido a projectos contendo a palavra biologia no título. Como vê o papel da física no desenvolvimento da biologia?

R. — Penso que a bioquímica é muito mais importante. Não sou muito conhecedor de bioquímica e por isso não posso alargar-me em exemplos com grande detalhe, mas tomemos o processo celular pelo qual uma célula engole um objecto e deforma a sua membrana, por vezes formando vesículas a partir desta deformação. Houve toda uma série de imagens inspiradas pela física deste fenómeno, onde a tensão de superfície era modificada, etc., mas a bioquímica fez muito mais: apercebeu-se que existem algumas proteínas envolvidas que tendem a dispor-se de uma certa forma, e uma segunda geração de proteínas que pode ter uma disposição diferente e impor um certo tipo de curvatura, e isto contém muito mais informação. É realmente muito mais, em termos de precisão e de informação, do que o que os físicos trouxeram para este campo. Mas a bioquímica ainda nos dá mais: por vezes utilizam mutuantes que vão suprimir estas proteínas alterando o comportamento da célula. Se pensarmos numa orquestra, os bioquiímicos dirigem vários instrumentos enquanto nós só temos um pequeno número à nossa disposição.

P. — Mas ao dirigir a orquestra, com todos os seus instrumentos, vamos acumulando muita informação dos vários módulos da biologia. Como se integra/relaciona toda esta informação?

R. — Precisamente, os físicos não são habitualmente muito bons nesse campo, porque não sabem bioquímica suficiente, e genética e outros domínios afins. Temos de conhecer todas estas áreas muito bem.

P. — Então não é muito optimista no que diz respeito ao papel da física na biologia...

R. — Eu ainda estou sinceramente pronto para encorajar as pessoas, mas dizendo-lhes que é preciso fazer uma longa viagem, que têm de voltar a ser estudantes e aprender tudo o que precisam nestas áreas, bioquímica, genética, biologia molecular e outras.

III. Investigação e financiamento

P. — É sabido que é um proponente da proximidade entre investigação e indústria. Quem, na sua opinião, beneficia mais nesta relação? E qual o limite máximo para o nível de financiamento de fundos privados em centros de investigação?

R. — Penso que devemos distinguir dois tipos de casos, um dos quais não gosto particularmente. Por vezes vê-se nas Universidades: um determinado grupo tem à sua disposição por exemplo uma máquina poderosa, digamos um aparelho de ressonância nuclear, e uma empresa aparece e diz que fez este plástico, vidro, borracha, e pede ajuda para determinar os grupos locais no seu interior, etc., e muito frequentemente vão entregar uma amostra sem sequer dizerem ou saberem exactamente o que contém. O grupo é unicamente suposto dar algum tipo de caracterização da amostra. Acho isso muito mau, muito perigoso e é uma tentação muito grande quando se adquire um grande equipamento, porque podemos utilizá-lo de uma maneira errada muito facilmente, por isso não aprecio esta situação. Por outro lado, o que realmente gosto é de pessoas que aparecem com uma nova invenção ou problema, discutimos, falamos do assunto e apercebermo-nos depois de algum tempo que talvez possamos participar. Nós vivemos esta situação em muitos problemas de adesão, não só eu, como as pessoas à minha volta. Pudemos criar uma espécie de acção conjunta, em que um ou dois estudantes de doutoramento, ou um jovem do nosso laboratório se tornava consultor da indústria. O tipo de situação em que se pretende realmente compreender razoavelmente um processo para o melhorar mais tarde, por exemplo, dá-me muito prazer. Existem alguns Centros em França que apenas fazem ensaios para a indústria e eu vejo isso com alguma relutância.

P. — Num país como Portugal, com praticamente nenhuma indústria hi-tech é difícil ligar a investigação ao sector privado. Pensa que a longo prazo, isto tornar-se-á um problema inultrapassável para o financiamento da investigação em física?

R. — Vou dar-vos um contra-exemplo que adoro, que se passou na Sérvia há já algum tempo, muito antes de todos os acontecimentos. Tinha um bom amigo sérvio que estava a trabalhar em dispersão de neutrões e reactores e num dado momento Tito disse que não havia dinheiro suficiente, e que se os investigadores quisessem continuar a sua actividade teriam de encontrar financiamento localmente. Ora esta é exactamente a mesma situação que descreveram: não havia nenhuma grande indústria, etc. Portanto, o que fez o meu amigo? Sabia que a indústria mais activa na Sérvia estava relacionada com o consumo de porcos. Então dirigiu-se às pessoas que matavam porcos, que comiam porcos, etc., e apercebeu-se que havia alguns problemas. Depois de matarem os porcos, o sangue entrava nos pulmões, penso eu, e isso criava toda uma série de dificuldades, de infecções... E porque ele tinha sido treinado em baixas temperaturas – era bastante conhecedor de tubagens, etc., disse que pondo um mecanismo na traqueia dos porcos o problema seria resolvido. A ideia funcionou e a indústria pecuária aumentou o lucro, e o meu amigo recebeu o seu financiamento. Não era uma grande quantidade de dinheiro, cerca de 25 000 dólares por ano para o seu laboratório, mas para a Sérvia era apreciável. Penso que este exemplo é muito bom e na maior parte dos casos não devemos criticar o estado das coisas e dizer que não podemos fazer nada. Devemos, em vez disso, tentar fazer alguma coisa.

P. — Em Portugal, o debate sobre as leis do financiamento da investigação está actualmente muito activo, uma vez que se é cada vez mais exigente na qualidade dos trabalhos científicos: fala-se de número de artigos, de boas revistas, de número de citações,... Na sua opinião, quais são as grandes qualidades de um trabalho de investigação? Como se devem avaliar os centros de investigação?

R. — Muito difícil. Não tenho uma resposta muito boa. Penso que o nosso sistema francês não é bom porque, em primeiro lugar, nas Universidades não temos avaliação. Ou praticamente nenhuma. Fundou-se um Centro, mas não há essencialmente nada. Schwartz fundou um Centro de avaliação por sua própria iniciativa, e no CNRS há avaliação, mas uma avaliação feita por um corpo eleito de investigadores e a partir desse momento existem "biases", distorções que são incomodativas. Distorções porque existem compromissos entre alguns grupos, alguns lugares – eu vou defender-te e tu vais defender-me, etc., faz-se política. Há também uma distorção sindical que é por vezes chocante. Não quero de todo aparecer como um inimigo dos sindicatos. Mas eu demiti-me das comissões do CNRS a dado momento quando tinha cerca de 40 anos porque num caso vi uma comissão com uma maioria sindical que votava uma moção de felicitações a um laboratório que já não produzia nada, mas que se encontrava ameaçado, e eu considerei isso inaceitável. Eu penso que o sistema francês de avaliação não é de todo satisfatório. Eu não acredito muito, não sou democrático sobre isso, não acredito na avaliação pelos pares no interior do país. Então poderemos dizer, vamos trazer outras pessoas da Europa, alguém de Portugal para uma comissão francesa do CNRS. Em geral, também não funciona porque essa pessoa vai sentir-se constrangida: ele não conhece muito bem o país, fica embaraçado se tiver de fazer críticas. Se não estiver contente, cala-se, e não vai fazer um esforço para criticar... Penso que não é por incluir alguns estrangeiros no sistema português ou francês que melhoramos o sistema. Agora se tivéssemos pensado numa comissão globalmente europeia talvez conseguíssemos algo melhor, não tenho a certeza. Teria ainda medo que os dois factores anteriores, os acordos políticos e a pressão sindical distorcessem muito o sistema. Não estou muito optimista. Sou finalmente mais favorável a um sistema do tipo NSF, que analisa projectos de investigação. Cada proposta é examinada por um corpo exterior vasto. É imperfeito, tira muito tempo, essa é a dificuldade. As pessoas nesse país (EUA), os investigadores da vossa geração perdem uma enorme quantidade de tempo a fazer propostas, a defendê-las, etc. Por isso não é um sistema perfeito, mas parece-me um pouco mais higiénico do que o sistema francês.

IV. Ensino da física

P. — Na última década, testemunhámos um declínio do interesse da física nos alunos do liceu. Quais são para si as causas deste declínio? Porque é que a física perdeu o seu glamour para os jovens? Como pensa que esta situação poderia ser invertida?

R. — Os meios de comunicação social enfatizaram alguns aspectos negativos da ciência, as suas repercussões na poluição do ambiente, os novos métodos genéticos de reprodução e as suas implicações éticas... Gerou-se algum receio, e podemos percebê-lo, existem boas razões para isso. Mas precisamos de persuadir os jovens do liceu justamente a lutar contra estas más utilizações da ciência e para isso precisamos de mais ciência, de descobrir novos processos menos poluentes, etc.

Não podemos simplesmente abandonar a ciência, precisamos de mais ciência para resolver estes problemas. Este é um dos lados da questão. O outro lado relaciona-se com um problema de civilização. Nos nossos países, neste momento os jovens são educados num meio em movimento constante: vêem imagens durante curtos intervalos de tempo, não estão treinados a fazer um esforço persistente; a existência da televisão e dos computadores, da Internet, não é uma grande ajuda, porque os jovens podem navegar na Net sem nada observar com atenção. A TV mostra-lhes um grande romance, resumido numa hora, e ficam com a impressão que o conhecem mas isso não é verdade. Por isso, por todas estas razões, a nossa época não é favorável e é difícil lutar contra isso. Mas espero que com alguns truques, se possam arranjar maneiras das crianças não viverem inteiramente em frente aos ecrãs. Por exemplo, levando-as a descobrir a botânica ou a geologia no campo, etc.

P. — … eles realmente adoram sair…

R. — Sim. Penso que é algo muito importante, não esquecendo o aspecto técnico. Disse uma vez em França que seria muito vantajoso para todas as crianças de 14 anos terem a oportunidade de passar o Verão por exemplo numa oficina, reparando carros. Os americanos têm algo semelhante. Talvez não reparando carros, mas servindo em cafés ou outras coisas... Nós não temos de todo este hábito. Um Presidente da Câmara mostrou-se interessado quando fiz esta proposta: o Presidente da Câmara de Toulouse. Ele pensou nisso, mas não conseguiu avançar com a ideia por causa do sistema legal. Era impossível pôr uma criança de 14 anos numa acção de Verão como esta por causa da protecção legal, coisas deste género... Por isso a ideia nunca funcionou.

V. Fim

P. — Hoje, se fosse estudante, escolheria de novo a física?

R. — Eu penso que escolheria a biologia. Mas é difícil de dizer, é uma questão virtual. Não creio que escolhesse letras. Dentro da biologia, se fosse preciso escolher, escolheria claramente a neuro-fisiologia.