Limiares epidémicos e endémicos

Limiar epidémico.

No caso da epidemiologia, este problema tem sido muito estudado no passado muito recente. A invasão de uma população por um agente infeccioso pode dar origem a dois regimes: a extinção da doença, após a infecção de um pequeno número de indivíduos da população; ou então a infecção de uma fracção significativa da população, a qual pode ocorrer só durante um período relativamente curto de tempo, caso em que se fala de um surto epidémico, ou ser permanente, caso em que se diz que a doença é endémica. O limiar que separa a extinção destas duas classes de possíveis evoluções finais chama-se limiar epidémico, ou limiar endémico se a doença persiste na população.

Conforme a susceptibilidade de uma população a uma determinada doença e as características desta (infecciosidade, tempo de recuperação, etc.), o par população / doença pode estar aquém ou além do limiar epidémico / endémico. Curiosamente, a passagem de um para outro destes dois regimes é também uma transição de fase de percolação, cf. figura anterior, e os modelos epidemiológicos discretos têm uma tradução na linguagem da Física Estatística. Foram por isso os físicos que deram as principais contribuições para entender como é que o limiar epidémico depende da estrutura da rede.

No caso das redes ‘scale-free’, sabe-se que esse limiar é muito menor do que seria numa rede regular ou ‘small world’, e é zero no limite da rede infinita. Isto significa que as grandes redes ‘scale-free’ são muito vulneráveis em relação à propagação de agentes infecciosos, propriedade que explica a fácil invasão dos nossos PCs por vírus informáticos que se propagam através da internet.

Transição para a persistência epidémica
Transição para a persistência. A figura mostra a persistência para diferentes valores de p, obtida com recurso a simulações num autómato celular. Coeficiente de aglomeração (tracejado), desvio padrão (picotado) dos picos epidémicos, fracção de simulações que sobreviveram 20.000 dias (pontos pretos). (Recurrent epidemics in small world networks, Journal of Theoretical Biology 233 (2005) 553-561).

No caso de redes ‘small world’ e de um par população / doença que estaria acima do limiar endémico se os indivíduos da população interagissem todos com todos, o limiar endémico depende do parâmetro p da rede de ‘small-world’ (rede mundo pequeno), ou seja, do número médio de ligações que cada nodo pode estabelecer a dividir pelo número total de ligações que o nodo poderia estabelecer. A doença extingue-se para valores pequenos de p e a transição para a persistência dá-se no fim do regime de ‘small world’, quando o coeficiente de clustering (aglomeração) começa a diminuir e a afastar-se dos valores característicos das redes regulares. O valor concreto de p, cf. figura da direita, que corresponde à transição depende dos parâmetros da doença e do tamanho da população.

As propriedades da rede de contactos, definidas pelo valor de p,  também têm influência na dinâmica a longo termo da infecção acima do limiar endémico. Quando p é maior que este limiar, mas próximo do valor a partir do qual a doença persiste, o número de infecciosos na população varia ao longo do tempo exibindo flutuações importantes em intervalos bastante regulares, num padrão que é semelhante ao das epidemias recorrentes de algumas doenças infantis, cf. figuras seguintes.

Variação do número de novos infectados com sarampo ao longo do tempo (de duas em duas semanas), obtida a partir de uma simulação num autómato celular que leva em conta a rede de contactos.
Variação do número de novos infectados com sarampo ao longo do tempo (de duas em duas semanas), obtida a partir de uma simulação num autómato celular que leva em conta a rede de contactos. a) p = 1, a população não tem estrutura espacial (rede de contactos homogénea). b) p = 0.2, perto do limiar de persistência epidémica, a rede de contactos tem estrutura espacial ( coeficiente de aglomeração ≠ 0). c) Dados experimentais. Em a) e b) os resultados mostram flutuações regulares com um período aproximado de 2 anos o que se ajusta bem aos intervalos de surtos de sarampo em populações humanas. No entanto, as amplitudes destas oscilações estão mais próximas dos dados experimentais para o caso em que a rede tem estrutura espacial, o que nos permite também obter informação sobre a estrutura da rede real. (Recurrent epidemics in small world networks, Journal of Theoretical Biology 233 (2005) 553-561).
Variação do número de novos infectados com pertussis (tosse convulsa) antes e depois da vacinação.
Variação do número de novos infectados com pertussis (tosse convulsa) antes e depois da vacinação. a) p = 0.2, as variações ao longo do tempo exibem um ruído maior do que aquelas obtidas para o sarampo na mesma rede. Após a vacinação o período de incidência da doença aumenta assim como a coerência dos seus picos (o ruído diminui). b) p = 1, rede de contactos homogénea. O período e a amplitude dos picos de incidência nesta rede são semelhantes aos obtidos para a rede com estrutura espacial, em contraste com o que vimos no sarampo, o que sugere que a importância das correlações espaciais depende também da doença em questão. Estes resultados estão em bom acordo com os dados desta doença obtidos experimentalmente. (Recurrent epidemics in small world networks, Journal of Theoretical Biology 233 (2005) 553-561).