Do Lego ao nano-Lego

There is plenty of room at the bottom

Richard P. Feynman

Há milhares de anos atrás, quando o Homem descobriu que a pedra lascada ficava cortante, procurou usar essa propriedade em benefício próprio, quer como instrumento de caça, quer como ferramenta. Hoje, podemos ambicionar não só ao conhecimento das características mais subtis dos materiais como à sua manipulação e consequente criação de novas propriedades.

À escala do nanómetro, a milionésima parte do milímetro, a realidade assume uma perspectiva que frequentemente contraria a intuição desenvolvida à escala macroscópica dos objectos, espaço e tempo do nosso dia-a-dia, muito diferente da que opera à escala do nano. Descemos ao universo quântico, onde a nossa compreensão, que é cada vez maior, abriu novas possibilidades onde a manipulação quântica de um pequeno número de átomos permite a construção de estruturas complexas que exibem, como um todo, propriedades por vezes completamente desconhecidas e muitas vezes surpreendentes.

Tal como no Lego que tão bem conhecemos, construímos estruturas complexas a partir de um leque limitado de "peças", também o fazemos no nano-Lego, mas os mecanismos de encaixe das "peças" - átomos ou pequenas moléculas - desafiam os mais imaginativos. Parafraseando o físico norte-americano R.P.Feynman (1918-1988), a realidade quântica é muito mais excitante que qualquer ficção científica.

Lego

Lego

Todos nós já contactámos directa ou indirectamente com as construções Lego. Essencialmente, usufruindo de um pequeno número de peças diferentes com encaixes universais e formas geométricas simples, temos a possibilidade de dar asas à imaginação e construir, usando os dedos, um número enorme de construções. O prazer lúdico de todos os que brincavam com Lego era precisamente o de ir além dos modelos propostos na caixa: a universalidade dos encaixes permite-nos, usando regras simples de construção, obter estruturas diferentes das pré-definidas.

Construção de Lego
Lego, um mundo onde a imaginação nos leva a uma inovação permanente.

Este processo tem nos dias de hoje uma designação muito na moda em ciência e engenharia: os denominados processos "bottom-up". Há, no entanto, três elementos que importa salientar:

  1. número e tipologia limitada das peças;
  2. mecanismo de encaixe bem definido;
  3. peças manipuláveis com os dedos das mãos.

Com base nestes elementos podemos construír analogias úteis entre o Lego conhecido de todos nós e os principais elementos do nano-Lego, a sua contrapartida à escala do nanómetro, onde as peças são agora átomos e moléculas.

nano-lego

Nano-Lego

Para termos uma ideia do quão pequena é esta escala, se 1 nanómetro fosse o diâmetro de um berlinde, 1 metro seria da ordem do diâmetro da Terra. Num nanómetro cabem aproximadamente 20 átomos. A esta escala, tal como no Lego, podemos tentar ir além do que conhecemos da natureza e tornarmo-nos nós próprios os criadores de novas construções. As "peças" que encaixam entre si de acordo com as leis da Mecânica Quântica podem formar novas estruturas mediante processos "bottom up" num paradigma semelhante ao do Lego. No entanto as diferenças, sendo significativas, justificam plenamente o fascínio e interesse que a investigação a esta escala tem suscitado.


As peças originais

No séc. XX a concepção atomista da matéria consolidou-se de uma vez por todas e foi sendo cada vez mais claro o modelo do átomo constituído por um núcleo que proporciona a força aglutinadora, que prende os electrões na sua vizinhança. Foi com a Mecânica Quântica, teoria que começou a ser desenvolvida no início do séc. XX, que se encontrou a concepção adequada para entender o comportamento da matéria a esta escala. Desta forma, percebemos hoje como é redutor imaginar um átomo como um minúsculo sistema planetário - pelo contrário, num átomo tudo se passa de um modo mais frenético e subtil, por exemplo, não é possível descrever um electrão como uma partícula, tal como um planeta com um movimento bem determinado, mas antes falamos de uma nuvem electrónica, a distribuição espacial da probabilidade de encontrar o electrão na vizinhança do núcleo.

São precisamente os átomos que constituem, naturalmente, as peças elementares do nano-Lego. E estes nós conhecemos: basta inspeccionar a tabela periódica. Mas, recordando um pouco de Química, sabemos que estes átomos podem ser muito diferentes entre si, dando origem a ligações químicas diversas, pelo que nem todos encaixam do mesmo modo, sendo que alguns não "encaixam" de todo. Ou seja, não será difícil imaginar que, no nano-Lego, a Mecânica Quântica esteja na origem de mecanismos de encaixe bem diferentes dos que conhecemos do Lego.


Novas peças

Molécula de água

Com efeito, os átomos ligam-se quimicamente entre si para formar moléculas, agregados (moléculas gigantes frequentemente metaestáveis) e sólidos. Aliás, quer o que somos quer o que vemos à nossa volta é composto por milhões e milhões de átomos e moléculas que se combinam entre si respeitando as suas leis de interacção descritas através da Mecânica Quântica.

Com o avanço da ciência e tecnologia ao longo do séc. XX fomos conhecendo e manipulando, cada vez melhor, a matéria a escalas cada vez mais pequenas. Em 1985, quando procurava encontrar explicação para a misteriosa "matéria negra" do Universo, o químico inglês Harold Kroto contactou um seu colega americano, Richard Smalley, que na altura tinha aperfeiçoado uma técnica inovadora de sintetização laboratorial de agregados. O objectivo era sintetizar moléculas gigantes de carbono usando a técnica de Smalley, pois Kroto suspeitava que poderia residir nessas moléculas a explicação para o problema da "matéria negra".

Kroto viajou para os EUA e eis que uns meses depois, em vez de conseguirem explicar a "matéria negra", os dois cientistas, em colaboração com um terceiro, Robert Curl, descobriram uma nova molécula contendo 60 átomos de carbono, com a forma de uma bola de futebol - o fulereno C60 (ver figura abaixo). Esta descoberta, que valeu aos três o Prémio Nobel da Química 11 anos depois, marca um ponto de viragem na perspectiva que o Homem tem da forma que as moléculas podem assumir.

Fulereno
Fulereno C60: 60 átomos de carbono que se ligam entre si numa estrutura com a forma de uma "bola de futebol".

Desde então, o número de "gaiolas ocas" ou com átomos no seu interior não tem parado de aumentar. A história adquire um twist importante quando em 1991 se produz um frasquinho contendo quantidades macroscópicas de fulerite, uma substância que tem como elementos constituintes não os átomos tradicionais mas estas gaiolas exóticas que são os fulerenos.

síntese laboratorial de fulerenos
Fulereno

A síntese laboratorial de quantidades macroscópicas de fulerenos com base no C60 e no C70 (em suspensão), veio iniciar toda uma nova actividade em ciência dos materiais, dedicada à busca de novos materiais feitos a partir de moléculas previamente desenhadas, possuidoras de propriedades específicas, com o fim de produzir materiais também eles próprios com propriedades específicas para subsequente aplicação tecnológica. Refira-se neste contexto a procura de materiais semicondutores de hiato largo, necessários para a produção de novos chips de computadores, e que tem incidido, entre outras linhas de investigação, na procura de novas formas de matéria formadas à base de gaiolas ocas de silício.

Este novo paradigma de sintetizar novas formas de matéria a partir de "peças compostas" veio desencadear uma revolução no estudo de novos materiais, cujos primeiros resultados começam agora a emergir. Assim sendo, se temos novas peças para usar no nano-Lego, vejamos, neste contexto, como abordar e compreender os mecanismos de encaixe.


Mecanismos de encaixe

Representação pictórica num estilo "Ball & Stick" da ligação covalente no diamante.
Representação pictórica num estilo "Ball & Stick" da ligação covalente no diamante. Esta ligação é muito forte, resultando da partilha de electrões por átomos de carbono vizinhos e é representada através de cilindros que ligam os átomos (as bolas) como ilustra a imagem. Este estilo de visualização, muito popular, é enganador pois não reflecte a natureza dinâmica dos processos à escala do nano.

Os mecanismos de encaixe de átomos e moléculas não são tão triviais como nas peças de Lego (daí o serem muito mais interessantes). Não só nem todos os átomos se ligam entre si, como também os que se ligam, não o fazem da mesma forma, pelo que os mecanismos de encaixe não são únicos. Com efeito, aprendemos na Química que existem vários tipos de ligação, como a metálica, covalente, etc., o que nos proporciona uma panóplia de possibilidades para dispor os átomos e moléculas bem mais rica que a que encontramos no Lego. Por outro lado, como manipular estes átomos ou moléculas? No Lego usamos os dedos, mas à escala do nanómetro importa abordar a questão da manipulação.


Manipulação

Não é possível manipular o nano-Lego da mesma forma que manipulamos Lego. Estamos perante uma tarefa muito mais complexa. Para encaixar e desencaixar peças de Lego usamos os dedos a nosso belo prazer, dentro das possibilidades de encaixe; o que podemos usar analogamente a dedos para manipular átomos e moléculas à escala do nanómetro? O que serão os nossos nanodedos?

E se construirmos uma espécie de pinça microscópica? Em última análise a pinça será feita de átomos, pelo que construí-la é em si mesmo um problema de Nano-Lego. Como veremos, este não é um problema fácil de ultrapassar.

Microscópio de força atómica (AFM)
Microscópio de força atómica (AFM). A figura ilustra a ponta de um microscópio de força atómica (à esquerda), que constitui um dos mais poderosos instrumentos de análise e investigação de estruturas atómicas nos dias de hoje. Esta ponta, feita de diamante, sofre minúsculos deslocamentos quando se usa para varrer uma superfície atómica, deslocamentos esses que podem ser detectados através da electrónica sofisticada de que se dispõe presentemente, bem como posteriormente transformados em imagens por vezes espectaculares, como a do painel da direita. Em Junho de 2004 foi batido mais um record de resolução com um AFM que atingiu os 77 pm (77 x 10-12 metros). Com efeito, a figura à direita evidencia detalhes de uma superfície constituída por átomos de tungsténio (também conhecido por volfrâmio), a amarelo; a escala da figura é 500 pm x 500 pm ( 1pm = 10-12 m).

Além da pequena escala, as nanopeças encaixam entre si através de ligações químicas que são muito mais sofisticadas do que poderíamos intuir. Na verdade, ao nível quântico podem ocorrer fenómenos que à nossa escala seriam considerados mágicos, como teleportação de átomos ou o denominado efeito túnel, em que electrões atravessam "nanoparedes".

Com efeito, no cerne de um processo químico típico, as "peças" que estabelecem uma dada ligação não são as únicas intervenientes no processo. Na realidade, as "peças" vizinhas, bem como as vizinhas das vizinhas, etc., participam e contribuem para a harmonia final que determina uma ligação química estável (lembremo-nos que a interacção electromagnética actua à distância). Qualitativamente, e dependendo do tipo de ligação química, participam tipicamente entre 5 a 15 "peças" nesta dança colectiva que constitui uma ligação química circunscrita no espaço de uma aresta de comprimento da ordem do nanómetro. Esta realidade quântica é incontornável e, como veremos, condiciona a forma como podemos manipular o nano-Lego.