O que é um condensado de Bose-Einstein

Todos por um, e um por todos, é a nossa divisa.

– Alexandre Dumas     Os Três Mosqueteiros.

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Tudo começou em 1924 quando Bose descobriu que a lei de Plank, que governa o espectro de radiação do corpo negro, pode ser deduzida a partir das leis da Mecânica Estatística e considerando:

  1. que os níveis de energia dos fotões (emitidos ou absorvidos pelo corpo negro) são discretos e
  2. que um número arbitrário de fotões pode ocupar o mesmo nível de energia. Hoje chamamos bosões às partículas, que como os fotões, podem ocupar o mesmo estado quântico.

Einstein fez imediatamente uma generalização da estatística de Bose para átomos (que, ao contrário dos fotões, são conservados) e notou que quando a temperatura desce abaixo de um determinado limiar, que depende apenas da densidade e da massa dos átomos, estes precipitam-se para o estado de energia mais baixa. Uma primeira ideia deste fenómeno pode ser obtida usando o applet da direita, onde se observa:

  1. que a temperatura determina a ocupação média dos níveis de energia e
  2. que esta ocupação varia suavemente com a temperatura até uma determinada temperatura, abaixo da qual todos os átomos se precipitam para o estado de energia mais baixa.
Molecule of the Year 1995. Condensado de Bose-Einstein foi capa da revista Science.

Dizemos que o sistema exibe uma transição de fase e que abaixo da temperatura de transição os átomos se organizam num novo estado da matéria, o condensado de Bose-Einstein (ou na sigla em inglês BEC). Contudo, o tipo de ‘organização’ ou a natureza deste novo estado da matéria eram tudo menos claros e até Einstein teve dúvidas sobre a existência do BEC. Ainda em 1924, escreveu a Ehrenfest:

A partir de uma certa temperatura, as moléculas “condensam” sem forças atractivas, isto é, acumulam-se a velocidades nulas. A teoria é atraente, mas haverá nela alguma coisa de verdade?

A condensação de partículas independentes é por si só um fenómeno surpreendente, mas a surpresa teria sido muito maior se Einstein tivesse suspeitado as propriedades do BEC. Passaram muitos anos sem que se chegasse a conhecer qualquer sistema com estas características e foi apenas em Junho de 1995 que E. Cornell e C. Wieman da Universidade do Colorado, em Boulder, anunciaram a observação de um condensado de átomos de 87Rb (um isótopo bosónico do Rb). A descoberta foi capa da revista Science nesse ano e seis anos mais tarde estes cientistas e W. Ketterle do Massachusetts Institute of Technology foram distinguidos com o Prémio Nobel da Física. Antes de descrevermos os detalhes desta descoberta, vamos tentar perceber porque razão a natureza do BEC é estranha.

A natureza quântica do condensado

De acordo com o princípio da incerteza de Heisenberg, a posição de um átomo está ‘distribuída’ por uma distância da ordem do comprimento de onda térmico (c.d.o. de de Broglie).

Átomos num gás à temperatura ambiente.

À temperatura ambiente, este comprimento é cerca de 10000 vezes menor do que a distância entre os átomos. Isto significa que as ondas de matéria dos átomos individuais estão descorrelacionadas, e que o gás é descrito pela estatística clássica ou de Maxwell-Boltzmann.

Comprimento de onda térmico a baixas temperaturas e distância das partículas do gás.

À medida que o gás arrefece, esta distribuição alarga, e eventualmente há mais do que um átomo em cada cubo com as dimensões do comprimento de onda térmico. A sobreposição das ondas de átomos diferentes tem como consequência a perda de identidade dos átomos individuais e o comportamento do gás muda radicalmente: passa a ser descrito pelo tipo de estatística quântica, descoberta em 1924 por Bose e Einstein.

Onda de matéria do gás de Bose e partícuas em estados de energia mais elevados.

A estatística de Bose-Einstein aumenta drasticamente a probabilidade de encontrar mais do que um átomo no mesmo estado e podemos pensar que na onda de matéria do gás de Bose, as ondas dos átomos individuais oscilam em uníssono.

Onda de matéria do gás de Bose (condensado de Bose-Einstein).

O resultado é a condensação de Bose-Einstein ou a ocupação macroscópica do estado fundamental do gás. A distribuição de densidade do condensado é representada por uma única onda macroscópica, com amplitude e fase bem definidas, exactamente como na onda dum campo clássico. A transição de um estado com ondas de matéria desordenadas para um estado com uma onda macroscópica coerente pode ser comparada à transição entre a luz incoerente e a luz coerente do laser.

A observação do condensado permitiu, de facto, testar o comportamento ondulatório da matéria à escala macroscópica. A figura seguinte à esquerda, obtida pelo grupo de W. Ketterle em 1995, mostra o padrão de interferência que resulta do choque de dois condensados de Bose-Einstein (neste caso de 23Na). A semelhança com o padrão observado na superfície da água, quando duas ondas circulares interferem dando origem a um padrão com máximos e mínimos bem definidos, cf. figura da direita, não deixa dúvidas sobre a existência da onda gigante do BEC.

Interferência de dois condensados de Bose-Einstein.
Interferência de dois condensados de Bose-Einstein.
Interferência de duas ondas na superfície da água.
Interferência de duas ondas na superfície da água.

Algumas das propriedades do BEC foram observadas noutros sistemas, uma vez que a superfluidez observada na fase líquida do 4He por Kapitza em 1937, assim como a superconductividade observada por Onnes em 1911, são manifestações de transições do tipo da condensação de Bose-Einstein.

As propriedades do BEC

As propriedades do BEC são estranhas e totalmente contraintuitivas. Uma das mais surpreendente é a superfluidez, ou escoamento sem atrito. O condensado tem uma rigidez colectiva que o ‘protege’ dos processos de interacção partícula a partícula responsáveis pela viscosidade fluida ou resistência ao fluxo, da qual resulta a superfluidez do BEC. De facto, não é apenas possível aos bosões ocuparem o mesmo estado quântico; as partículas têm mesmo uma tendência para o fazer. Esta tendência traduz-se na amplificação por um factor (N+1) da probabilidade de transição de um estado inicial de uma partícula para um estado final ocupado por N partículas. Assim, por exemplo, se durante o escoamento de um condensado num tubo capilar uma das partículas for dispersa pela interacção com as paredes do tubo, a probabilidade de transitar de volta ao condensado é proporcional a (N+1), onde N é o número de bosões no condensado. Como este número é macroscópico, isto é, enorme, a partícula volta imediatamente ao condensado com probabilidade praticamente um.